A TEORIA QUEER E AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL – O namorado do papai ronca

 

A discussão sobre as relações homoafetivas tem se tornado cada vez mais frequente na sociedade atual. Na mídia, o assunto se faz cada vez mais presente, principalmente nas telenovelas, onde percebemos um aumento crescente da inserção de personagens homossexuais.

Este trabalho tem por objetivo analisar a representação da homossexualidade na literatura infanto-juvenil, especificamente no livro O namorado do papai ronca”, de Plínio Camillo. Para tanto, foi utilizada a teoria Queer como referencial teórico.

Apesar de o assunto ser polêmico e ainda representar um grande tabu entre alguns pais, torna-se necessário sua discussão, uma vez que em diversos países o casamento entre homossexuais foi legalizado. Desse modo, atentar-se para as novas configurações familiares da sociedade contemporânea formada por dois pais ou duas mães é imprescindível para ponderar sobre a homofobia.

A literatura encontra-se desde sempre em nossas vidas, mesmo que não tenhamos consciência de sua presença. Antônio Cândido (1995), ao relatar a importância da literatura no atual mundo capitalista e globalizado, afirma que a literatura humaniza o homem ao lidar com suas representações tanto de modo consciente quanto inconsciente. A literatura é indispensável ao homem, algo constituinte de seu ser, sem o qual este se vê nos termos de Cândido, mutilado. Sendo a literatura um bem público, ela é um direito de todos. Creio, assim como Cândido, que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (1995, p.263). Na infância, a literatura desempenha o importante papel de fazer a criança questionar e conhecer o mundo, de adquirir valores. Assim, antes de nos atentarmos para a análise do homossexualismo no livro mencionado é importante fazermos um breve preâmbulo sobre as origens do gênero literário denominado literatura infanto-juvenil. A literatura infantil surge no final do século XVII impulsionada pela ascensão da burguesia na sociedade. No Brasil, a literatura infantil surge no final do século XIX e início do XX. No início, em virtude da influência européia, possuía um caráter essencialmente pedagógico, ou seja, os temas das obras sempre traziam ensinamentos morais destinados à educação de crianças e jovens. Destacamos um trecho da autora Regina Zilberman (2003) que reafirma esse caráter pedagógico presente nas primeiras publicações de literatura destinada às crianças:

É no âmbito da ascensão de um pensamento burguês e familista que surge a literatura infantil brasileira, repetindo-se aqui o processo ocorrido na Europa um século antes, e como no Velho Mundo, o texto literário preenche uma função pedagógica, associando-se muitas vezes à própria escola, seja por semelhança (convertendo-se no livro didático empregado em sala de aula) ou contigüidade (o livro de ficção que exerce em casa a missão do professor, como nas narrativas de cunho histórico de Viriato Correia e Érico Veríssimo, ou informativo, em Monteiro Lobato) (2003, p.207).

 

A função da literatura por muito tempo foi considerada como pedagógica, ou seja, servia para ensinar e repassar valores. Como exemplo podemos citar alguns romances e fábulas, cujo conteúdo expõe uma constante luta entre o bem e o mal, trazendo à tona o conceito de certo e errado. A fábula sempre apresenta ao final uma lição de moral, assim como a maioria dos livros destinados ao público infanto-juvenil. No começo da inserção da literatura infantil não havia espaço para as questões relativas à diversidade sexual. Foi a partir do final do século XX que surgem livros destinados ao público infantil abordando o tema das relações homoafetivas. São obras como: O gato que gostava de cenoura (1999), de Rubem Alves, Meus dois pais (2010) de Walcyr Carrasco, Olívia tem dois papais (2010) de Márcia Leite, dentre outros.

 

Ao discorremos sobre a literatura, é preciso refletir também sobre o papel da escola no que se refere à abordagem do assunto. Para a maioria das crianças é na escola que terão o primeiro contato com o texto literário. Assim, ao trabalhar com a temática da homoafetividade, os professores poderão minimizar o preconceito e contribuir para a formação de crianças e adolescentes compreensivos e respeitosos com a diversidade. É tarefa do educador a formação de leitores críticos e conscientes, e assim, é muito importante a inserção de obras que trazem à tona a discussão da homossexualidade. Deste modo, o propósito desse trabalho é fazer uma análise do livro “o namorado do papai ronca”, destacando as questões relativas à homofobia ou diversidade sexual. A fim de analisar as noções de identidade na obra, a teoria Queer foi selecionada como principal referencial teórico.

A teoria Queer surgiu nos Estados Unidos no ano de 1990, com o objetivo de questionar as concepções de sexualidade presentes na sociedade. O termo Queer procede do inglês e significa raro, estranho, excêntrico. Guacira Lopes Louro (2004), pesquisadora da temática desde a década de 1990, conceitua o termo da seguinte forma:

Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser „integrado e muito menos „tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. (LOURO: 2004, 7-8).

A teoria surgiu como uma resposta e também como uma crítica ao movimento homossexual, uma vez que no início dos anos 90, apenas os homens, homossexuais brancos e de grande poder aquisitivo faziam parte do movimento. As lésbicas, Drag queens, transexuais, dentre outros, não estavam inclusos nesse caminho de liberação sexual. Assim, com o objetivo de questionar essa situação, surgiu o pensamento Queer, que buscou refletir sobre a luta e a identidade. Os estudos de Foucault e da contemporânea Judith Butler são referenciais teóricos que norteiam o estudo da teoria Queer.

A teoria Queer difere das ideias presentes no movimento gay ao propor a não identidade. O objetivo é questionar essa noção de identidade que pressupõe a existência de dois gêneros. Assim, a teoria Queer defende a tese de que a identidade não é uma essência, mas algo contínuo. Ao propor essa negação de identidade o que se busca é investigar outros aspectos importantes que auxiliam na delimitação do tema, tais como a construção étnica, a classe social, não se restringindo apenas a questão do gênero. Desse modo, a teoria surge para lutar pela igualdade dos diferentes indivíduos sexuais presentes, procurando também questionar as normas de uma sociedade heteronormativa.

Dessa forma, buscando avaliar a questão da homossexualidade na literatura infanto-juvenil foi escolhido o livro “O namorado do papai ronca”, de Plínio Camillo. O romance escrito por Plínio foi lançado em junho de 2012. O título chama a atenção e aguça a curiosidade dos leitores ao perceberem que o autor irá trabalhar com um tema polêmico. O protagonista é Dante, um garoto de 12 anos que, por causa de uma viagem de sua mãe à Itália precisa morar seis meses com o pai Heitor em Procópio, interior de São Paulo. Dante passa então por um período de adaptações: entrar na escola no meio do ano letivo, morar em uma nova cidade, enfrentar a saudade da mãe e dos amigos que deixou.

O autor utiliza uma linguagem simples, voltada para o público jovem, tornando a leitura mais rápida e interessante. Ao descrever o cotidiano de Dante, Plínio o faz de forma descomplicada, dividindo o dia em manhã, tarde e noite, como se fosse uma agenda. A presença da internet é um fator que se aproxima do universo dos jovens. Alguns relacionamentos de Dante são realizados através das redes sociais e alguns personagens nos são apresentados como se fossem perfis do Facebook. E também os diálogos de Dante com a mãe são todos realizados via Skype. Além disso, em diversos momentos são apresentados filmes, jogos, seriados e músicas contemporâneos.

Acostumado com a vida agitada de São Paulo, o jovem precisa adaptar-se à cidade do interior. Ele é apaixonado por futebol e logo se destaca na escola por ser um jogador com muito talento. O personagem passa então a conviver com Ademar, o namorado do seu pai. Dante possui um bom relacionamento com Ademar, e sua maior implicância é que o namorado do seu pai ronca. Porém, o fato do pai de Dante namorar um homem faz com que o garoto seja excluído. A própria avó e mãe do Heitor não aceita esse fato e deixa de conviver com o filho. Dante deixa de disputar o campeonato de futebol porque os pais dos colegas de time os proibiram de manter amizade com o menino em virtude da orientação sexual do pai. Em determinado momento da narrativa, Dante questiona o pai a respeito de sua sexualidade, como transcrito abaixo:

“— Você é gay, pai?

— Como?

— Quero saber se você é gay.

— O que é ser gay, filho?

—  Pai! Estou perguntando e não quero responder.

— Filho, sou um homem que adora o filho que tem e que ama outro homem.

— Mas então, é gay!

— Não sei. Sou alguém que gosta do que é.

— Não é gay?

— Filho!

— É, ou, não é?

— Sem entender o que você quer dizer não sei responder.

— Então tá: gay é aquele que anda rebolando, fala fino e faz coisas como se fosse uma mulher- Então eu não sou.

— Então eu não sou.

— E que também transa com um homem.

— Então eu sou”. (2012, p.113-114).

 

Nota-se a questão do estereótipo na qual o homossexual masculino possui modos afeminados, enquanto os heterossexuais são vistos como “machões”. É interessante relacionarmos essa posição aos teóricos Queer, pois temos aí o binômio homossexual x heterossexual. Segundo a teoria Queer, o movimento gay falha ao buscar impor as diferenças uma vez que não perde de vista a referência heterossexual. O livro retrata bem o tema do preconceito, mostrando o quanto está presente em nossas vidas.

Assim, em um momento em que tanto se discute sobre as relações homoafetivas, a obra analisada é uma interessante opção para tratar o tema com crianças e adolescentes. Para a maioria das crianças é na escola que terão o primeiro contato com o texto literário. Portanto, ao trabalhar com a temática da homoafetividade, os professores poderão minimizar o preconceito e contribuir para a formação de crianças e adolescentes compreensivos e respeitosos com a diversidade.

 

Autora: Jacqueline Paula da Silva (UFU)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Camillo, Plínio. O namorado do papai ronca. São Paulo, Prólogo Selo Editorial, 2012.
MORTON, Donald. El nacimiento de lo ciberQueer. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios Queer. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 111 a 140.
Teoria Queer e Behaviorismo radical – muito além dos rótulos de sexualidade. Disponível em: http://www.olharbeheca.blogspot.com. Acesso em: 18 de fevereiro de 2013.
CANDIDO, Antônio. O direito à literatura e outros ensaios. In: Vários Escritos. 3. ed.
Revista e ampliada, São Paulo, Duas Cidades, 1995.
Criações      internéticas.  O    namorado   do    papai    ronca.    Disponível  em: http://www.celpcyro.org.br. Acesso em: 18 de fevereiro de 2013.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global, 2003.

ONDE COMPRAR 

Investimento – livro digital: Dez reais (R$10,00) – Pix: 016410398/84

Enviar o comprovante para o email: pcamillo60@uol.com.br

Receberá em breve a versão digital

 

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1 comentário

  1. Muito interessante o texto. Na realidade, nada sabia do QUEER e foi de uma maestria ter lido sobre. O livro O namorado do papai ronca parece-me ótimo e não só as crianças e adolescentes deveriam ler, mas, principalmente, alguns adultos. Assim que der vou adquiri-lo.

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